Na Argentina, o governo do presidente Javier Milei vai adotar uma medida polêmica sobre os funcionários públicos: a exigência de um “teste de idoneidade”. Essa prova será aplicada em dezembro a todos os servidores com contratos previstos para vencer no final de 2024. No contexto brasileiro, a exigência de avaliações como essa enfrentaria desafios legais.
Isso porque, no caso dos nossos vizinhos, os funcionários públicos que falharem no exame não terão seus contratos renovados e serão exonerados de seus cargos. Essa iniciativa faz parte da “política motosserra” de Milei, que busca reduzir o tamanho do Estado e controlar os gastos públicos na Argentina.
Leia também
Milei diz que Argentina ainda não está pronta para eliminar controles cambiais
‘Lobo de Wall Street’ elogia Javier Milei e sugere ‘motosserra’ para os EUA
Ações de bancos argentinos decolam 400% com Milei e batem Itaú e Nvidia
Guia gratuito da Rico e do InfoMoney ensina a buscar uma Renda Alternativa com Imóveis mesmo começando com pouco
A prova de idoneidade faz parte da estratégia de ajuste fiscal para reduzir o número de funcionários públicos no país. Desde que o novo governo assumiu a gestão houve a demissão de mais de 50 mil servidores. De acordo com a imprensa local, como o Clarín e La Nación, a administração Milei pretende demitir outros 50 mil funcionários e sinalizou o encerramento de contratos temporários.
Prova de idoneidade a funcionários públicos pode ser adotada no Brasil?
Tornando a medida ainda mais polêmica — e alvo de críticas de sindicatos —, o governo da Argentina não deu detalhes sobre os critérios da avaliação ou como as comissões avaliadoras serão compostas. Por isso, quem se posiciona contra as medidas de Milei tem levantado questionamentos sobre a legalidade e a transparência do processo.
Mas vale dizer que essa dor de cabeça não deve ultrapassar as fronteiras argentinas e chegar ao Brasil. Isso porque o nosso sistema de contratação e demissão de funcionários públicos é regulamentado de maneira diferente. A Constituição Federal garante a estabilidade aos servidores públicos após três anos de efetivo exercício, desde que tenham sido aprovados em avaliação de desempenho durante o estágio probatório.
“A demissão de servidores públicos no Brasil deve seguir regras estritas. Como, por exemplo, a condenação por sentença judicial transitada em julgado ou a conclusão de um processo administrativo que garanta ampla defesa”, explica Eduardo Martins Pereira, especialista em Direito Público do escritório Schiefler Advocacia. Ele também destaca a possibilidade de demissão por avaliações periódicas de desempenho, que até está prevista na carta magna. “Só que isso depende da regulamentação desse procedimento em lei complementar — o que nunca ocorreu.”
Portanto, impor um “teste de idoneidade” aos servidores públicos no Brasil violaria os princípios constitucionais de estabilidade e ampla defesa. Ainda assim, Roberta Dantas Ribeiro, sócia do Chalfin, Goldberg e Vainboim Advogados, lembra que a estabilidade é aplicável apenas aos servidores estatutários. “O artigo 37 da Constituição também prevê nomeações para cargos em comissão, que não têm qualquer garantia de permanência. Está previsto também as contratações temporárias com objetivo de atender uma necessidade temporária de excepcional interesse público”, explica.
Além disso, funcionários da administração pública indireta, como autarquias, empresas públicas, fundações de Direito Público e sociedades de economia mista, são contratados sob as regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). “Para esses casos, a demissão pode se dar a qualquer momento, sem a necessidade de sentença judicial transitada em julgado ou de processo administrativo”, pontua Eduardo Martins Pereira, do Schiefler Advocacia.
Justiça brasileira permite provas de idoneidade a funcionários privados?
Não são apenas os funcionários públicos brasileiros que têm respaldo legal para escaparem de uma “prova de idoneidade”. Henrique Melo, advogado de Direito Trabalhista e sócio do NHM Advogados, frisa que no Brasil o mais próximo disso seria a exigência da apresentação de certidões de antecedentes criminais e antecedentes financeiros. Mas, mesmo nesse caso, não seria uma questão simples.
Além de não existir uma lei que disponha sobre quais informações o empregador pode solicitar, o artigo 5º da Constituição resguarda o direito do indivíduo à privacidade e intimidade. Já a lei 9.029/1995 proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso ao emprego ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, entre outros.
“A exigência de certidões de antecedentes só é permitida quando há justificativa relacionada à natureza do trabalho”, diz Melo. Ele explica que o Tribunal Superior do Trabalho permite esse tipo de prova para funções específicas. Como, por exemplo, para empregados domésticos, cuidadores de menores, idosos ou deficientes (em creches, asilos ou instituições afins), além de trabalhadores que atuam com substâncias tóxicas, entorpecentes e armas, ou que atuam no setor financeiro ou com informações sigilosas. “Nos casos em que não existem justificativas, a exigência de certidões caracteriza um dano moral praticado pela empresa.”