Quando você é alvo de um evento discriminatório ou hostil no trabalho, isso não abala só sua segurança psicológica. Também traz à tona questões sobre como você deve lidar com a situação. Um incidente com um colega de trabalho ou um chefe tóxico podem expor falhas em seu senso de pertencimento, fazendo com que você se sinta pressionado a renunciar aos seus direitos para ser visto como “alguém que joga em equipe”.
Por meio de diversos projetos de pesquisa e de uma série de grupos focais, entrevistei e apoiei mais de 400 profissionais que enfrentaram o desafio de se abrir sobre o assunto após um evento tóxico no trabalho. Impressiona-me quanta tenacidade e força são necessárias apenas para tomar a decisão de denunciar. Mas o processo e a tensão associada não param por aí.
Muitos acreditam erroneamente que, após denunciarem uma situação ou incidente, sentirão alívio. No entanto, descobrem que continuam a sentir e a processar os medos do ocorrido, mesmo anos depois. Outros têm dificuldade para seguir em frente por completo, e se questionam por que continuam exaustos e ainda carregam o peso do evento.
Diversifique investindo no Brasil e no exterior usando o mesmo App com o Investimento Global XP
Considere Leila*, uma gerente de serviços profissionais. Ela não denunciou um caso de discriminação no local de trabalho, em que o seu supervisor direto fez comentários racistas e sexistas, presumindo que as suas alegações não seriam levadas a sério. Depois, ela passou os 16 meses seguintes procurando um novo emprego, mas sentia culpa por pensar que deveria ter feito a denúncia para beneficiar aqueles que viriam depois dela.
Há ainda o caso de Asha, uma advogada que denunciou um incidente de assédio sexual e foi para outra empresa após fechar um pequeno acordo. Três anos depois, ela ainda questiona constantemente as intenções e ações dos seus novos colegas. Ela se pergunta se o que aconteceu em sua antiga empresa está acontecendo novamente. Depois, há o caso da Gloria, uma alta funcionária pública que apresentou uma queixa de discriminação depois de ter sido preterida para uma promoção baseada no seu gênero e ainda sente o estresse físico e a ansiedade de ter feito a denúncia. Cinco anos mais tarde, as pessoas em seu local de trabalho questionam sua lealdade, apesar de ela ter vencido o caso.
Existem quatro fases distintas no rescaldo de um incidente tóxico, cada um exigindo seu próprio conjunto de estratégias e mecanismos de resposta. Aqui, vamos desvendar as duras emoções que acompanham cada fase e mostrar como as pessoas que entrevistamos as superaram. Para os líderes, é crucial reconhecer essas fases, tanto para reduzir o impacto negativo do processo de denúncia quanto para oferecer amplo apoio aos colaboradores que, assumindo um risco pessoal significativo, expressam suas preocupações para melhorar a cultura organizacional.
Primeira fase: decidir se deve denunciar
Se você chegou até aqui, aconteceu algo que fez você questionar sua segurança ou bem-estar no trabalho. Ao decidir se deve denunciar, comece ao fazer a si mesmo estas três perguntas:
1. Como minha organização lida com questões de RH?
Antes de denunciar um incidente, é importante compreender a cultura da sua empresa. Existem protocolos e processos de denúncia claros em vigor? De que forma questões semelhantes foram tratadas no passado? Sua denúncia será investigada internamente ou será contratada uma agência externa? As respostas a estas perguntas podem ser úteis para avaliar o risco pessoal da denúncia face à possibilidade de mudança.
2. Que resultado estou buscando ao denunciar o problema?
É igualmente importante compreender suas próprias motivações para fazer a denúncia. Existe um resultado específico que você deseja? Tem mais a ver com se sentir ouvido? Você está em busca de reparação financeira ou de outro tipo? Você espera que o infrator seja punido ou demitido? Ser claro sobre o resultado desejado permite avaliar compensações e riscos com mais confiança.
3. Tenho apoio e um bom advogado?
Você tem apoio executivo para trazer à tona esta questão? Alguém com conhecimento jurídico e de RH está orientando você? Se a ação que você está denunciando for flagrantemente ilegal e você tiver o apoio do supervisor ou da equipe, é provável que a denúncia seja levada mais a sério. No entanto, se você estiver denunciando algo mais sutil e não existir consenso em torno do assunto, pode ser mais fácil para a organização enterrar ou desacreditar a denúncia.
As emoções predominantes na primeira fase são raiva, descrença e decepção no sistema, e todas elas exigem um espaço seguro para que possam ser ouvidas e validadas. Mesmo que você opte por não denunciar, ainda é necessário aceitar o que aconteceu e as dúvidas e medos que o caso suscita.
Colleen Ammerman, diretora da Harvard Business School Race, Gender & Equity Initiative, destaca que, mesmo que uma denúncia ou reclamação formal não pareça viável, você ainda tem opções e não está impotente. “Ser maltratado pelo seu empregador pode ser devastador, mas dá a você informações valiosas sobre como gerir sua carreira nesse ambiente”, analisa Ammerman. “Se você não quiser usar canais formais, seu gerente trabalhará com você para mitigar os danos que está enfrentando? Se for seu gerente quem está violando a política ou a lei, você tem mentores que podem ajudar você a mudar para outra equipe ou colegas que estão dispostos a defender você no dia a dia?” Com um apoio informal eficaz, você pode escolher, nos seus próprios termos, permanecer na organização e alcançar metas importantes para você. Mas é importante avaliar se esse apoio existe. Sem maneiras formais ou informais de abordar a sua experiência, você pode perceber que a empresa é fundamentalmente incapaz ou não quer valorizar você e decidir que sair é a opção estratégica.
Segunda fase: o dilema da denúncia
Se você decidir denunciar, não há nada que substitua uma documentação clara e testemunhas para respaldar suas afirmações. Evidências objetivas e claramente estabelecidas serão a melhor defesa contra qualquer potencial manipulação psicológica e retaliação. Para quem decide denunciar, o conselho mais importante é: documente, documente, documente. Veja o caso de Anna, que trabalha para uma grande agência de publicidade. Ela comentou que, após denunciar um de seus gerentes por fazer comentários racistas sobre clientes, o RH perguntou várias vezes se as conversas tinham sido gravadas ou documentadas, em vez de tomar medidas para entrevistar outras pessoas diretamente.
O ideal é que você anote os incidentes à medida que eles acontecem. Tome notas do que foi dito ou feito e com quem você falou e, depois, envie as anotações por e-mail para você mesmo para registrar os carimbos de data e hora. Essas observações podem servir para refrescar sua memória e servir como cronograma durante discussões jurídicas ou de RH.
É fundamental ter um forte sistema de apoio emocional (além de orientação jurídica) durante esta fase do processo. As investigações são frequentemente longas e demoradas. Você pode sentir que precisa se defender, como se fosse você quem está em apuros. Os participantes da minha pesquisa normalmente dizem que leva de duas semanas a seis meses para que uma denúncia seja plenamente investigada e resolvida.
Embora as denúncias possam levar a mudanças ou consequências para comportamentos inadequados, raramente resolvem a situação completamente. Muitas pessoas consideram o processo em si desconcertante. Na maioria das vezes, o processo levanta questões incômodas sobre se o RH existe para proteger a empresa de responsabilidade civil ou os seus colaboradores de danos. Muitos dos que se manifestam sentem mudanças no apoio após denunciarem. Para alguns, ocorre forte retaliação, mas para outros, pode parecer uma erosão mais sutil de pertencimento. Nesta fase, ter a credibilidade e os motivos questionados repetidamente pode causar sentimentos de desamparo, raiva, isolamento, vergonha e decepção no processo de denúncia.
Terceira fase: das repercussões secundárias à cura
Muitas pessoas percorrem um longo caminho de recuperação para processar totalmente o que aconteceu a elas. Elas ficam com uma sensação inabalável de perda e tristeza. Denunciar frequentemente coloca a pessoa frente a frente com um desencanto persistente em relação à sua vida profissional. Alguns lutam contra a dúvida, questionando se valeria a pena falar abertamente e se preocupando com penalidades imprevistas.
Descobri que, para muitas mulheres, passar pelo processo de denúncia traz à tona sentimentos latentes de tentar existir e liderar em culturas que não as enxergam, valorizam ou celebram. Nesta fase, as emoções dominantes são impaciência, frustração e exaustão.
Tal como Asha e Gloria, a maioria das pessoas espera se sentir melhor depois de denunciar, e não conseguem reconciliar ou compreender totalmente as emoções persistentes e os medos secundários que ainda existem mesmo anos após os seus incidentes. Muitas pessoas que buscam orientação ou coaching precisam ser lembradas de que não há nada de errado com elas e que não são fracas e nem ficaram fraturadas por ainda estarem processando eventos do passado.
Como diz Pooja Lakshmin, médica, psiquiatra e autora de “Real Self-Care” (Autocuidado real, em tradução livre):
Estimulo os pacientes a pensarem na toxicidade do local de trabalho e nas consequências, como uma bomba que explodiu em sua vida. Os estilhaços terão impacto em tudo. É comum começar a questionar todas as áreas da sua vida profissional e pessoal: quem esteve presente para você no momento de necessidade? Quem lhe deu de ombros, disse que você estava exagerando ou que era ingênuo por esperar responsabilização? A cura, que envolve dar sentido a eventos interpessoais difíceis, não é um processo linear. Incentivo os pacientes a usarem a linguagem do luto – você perdeu uma versão antiga de si mesmo e está aprendendo a entender a nova versão de quem você se tornará após esse evento.
As pessoas afetadas pela toxicidade no local de trabalho devem procurar ajuda fora de suas organizações para seguir em frente: encontre apoio em outros e planeje o cenário.
Compreender o que pode acontecer durante e depois do processo de denúncia pode ajudar a planejar o próximo passo. A maioria das pessoas que entrevistei procurou consultores, coaches, terapeutas e até mesmo advogados externos para discutir as opções. Alguns colaboradores processaram suas organizações depois que os processos internos falharam. Muitas pessoas iniciaram um planejamento de cenários completo. Nesta fase, coaching é particularmente útil para gerar ideias sobre como seguir em frente.
Este também pode ser um bom momento para decidir se você pode ficar e ter sucesso em sua organização ou se precisa considerar uma saída. Você não precisa sair imediatamente, mas ter opções dá a muitas pessoas um maior senso de controle.
Compartilhar suas histórias e perceber que não estavam sozinhos também ajudou muitos dos entrevistados a se sentirem menos isolados, amedrontados e sobrecarregados. Amelia, gerente de produto, descreveu: “Eu não tinha ideia de que compartilhar minha história e ouvir outras pessoas seria o que me libertaria”.
Encontre maneiras de processar o luto e a perda
O estresse que as pessoas sentem aumenta durante e após o processo de denúncia. Muitas pessoas se questionaram se valeu a pena se manifestar, frequentemente colocando em dúvida cada passo dado durante a investigação. Elas repetiam suas conversas a si mesmas incessantemente. Eu compartilhei o suficiente? Esperei muito para me manifestar? A maneira como uma pessoa lida com os efeitos posteriores de um evento tóxico pode ser muito mais definidora do que o próprio evento.
Sempre que possível, as pessoas que denunciaram se afastaram por um tempo. Outras incorporaram movimento, estar na natureza ou trabalharam com um terapeuta somático. Elas encontraram uma maneira de processar as emoções na mente e no corpo e praticaram pequenos atos de alegria para superar os sentimentos de perda e opressão em busca da cura e do impulso para seguir adiante.
Quarta fase: da recuperação ao retorno
Para a maioria das pessoas, superar um evento tóxico não é um processo linear; elas podem passar pelas quatro fases em seu próprio ritmo, enfrentando contratempos e avançando ao longo do caminho. A jornada normalmente se estende por vários anos e frequentemente se desenrola de maneiras imprevisíveis. Descobri que, para a maioria das pessoas, o tempo do processo é mais ou menos assim:
Primeira fase, dia 1 a 6 meses: decidir se deve denunciar
Segunda fase, 2 semanas a 6 meses: o dilema da denúncia
Terceira fase, 6 meses a 2 anos: das repercussões secundárias à cura
Quarta fase, 2 anos para mais: da recuperação ao retorno
Embora o processo de cura seja pesado e possa ser complicado, há histórias de sucesso de pessoas que se recuperaram totalmente depois de enfrentar uma situação tóxica. Quando as pessoas alcançam esse estágio, normalmente começam a sentir alívio, determinação e otimismo cauteloso.
Consideremos a líder que denunciou um padrão de discriminação de gênero e saiu porque sua empresa não tomou as medidas adequadas. Hoje ela é CEO de uma marca de impacto social. Ela se sente curada porque está criando sua própria cultura onde os comportamentos são importantes. Ou analisemos o caso da sócia sênior de um escritório de advocacia que procurou coaches e consultores e hoje acolhe uma comunidade onde outras mulheres podem compartilhar suas histórias relacionadas a incidentes de trabalho tóxicos. Ou a gestora de uma organização sem fins lucrativos que denunciou o líder da sua organização, mas, inicialmente, foi demitida. Ela conseguiu reabrir seu caso dois anos depois, quando 12 de seus colegas compartilharam histórias semelhantes. A organização demitiu o líder e implementou novos processos de denúncia.
Leticia Garcia, coach executiva e diretora associada da Iniciativa de Liderança da Harvard Business School, acredita que as lições que as pessoas aprendem ao longo do processo de denúncia e recuperação não podem ser subestimadas. “O processo de recuperação e retorno é único para todos. Pode demorar, mas há aprendizado e sabedoria do outro lado”, pondera.
Anos depois de terem denunciado e processado as emoções em torno do evento, a maioria das pessoas afirma que aprendeu habilidades essenciais que valorizam e das quais hoje dependem. Elas ocupam espaço antes de reagir aos eventos-gatilho no trabalho. Procuram controle mesmo em meio a dinâmicas hostis e protegem sua paz ao mesmo tempo em que enfrentam de frente as duras realidades. Muitos fizeram escolhas futuras de emprego com base no que aprenderam, procurando evitar as mesmas situações, enquanto outros passaram a agir mais rapidamente se voltassem a enfrentar toxicidade no local de trabalho (ou em suas vidas em geral). Alguns mudaram o rumo de toda a carreira por causa do que aconteceu com eles.
+++
Recuperar-se de eventos tóxicos requer tempo e paciência. É comum a dor e os sentimentos de perda surgirem em ondas. Não se prepare para o fracasso ao presumir que terá um encerramento emocional após denunciar.
As pessoas que encontrei que se concentraram e localizaram os recursos essenciais para a cura irradiam uma mistura única de vitalidade, clareza e felicidade. Elas vivenciaram uma série de eventos desafiadores e perceberam que, embora o processo de recuperação seja gradual, a transição da dúvida sobre si mesmos para a reconstrução da autoconfiança é inestimável. No final, a maioria diz que o retorno foi ainda mais importante do que a justiça que procuravam como resultado das denúncias. Elas acreditam que a coragem pessoal necessária para fazer a denúncia as tornou não apenas melhores defensoras de si mesmas, mas também líderes e aliadas mais empáticos para os outros no local de trabalho.
———
Deepa Purushothaman é executiva da Harvard Business School e fundadora da re.write. Ela também é autora de The First, The Few, The Only: How Women of Color Can Redefine Power in Corporate America (As primeiras, as poucas, as únicas: como mulheres negras podem redefinir o poder na América corporativa, em tradução livre).
HBR: ©.2024 Harvard Business School Publishing Corp./Distribuído por The New York Times Licensing Group