O governo federal prepara um projeto piloto com a utilização de biodigestores para substituir o tradicional gás de cozinha em residências localizadas em áreas isoladas de centros urbanos. A ideia é possibilitar o tratamento de resíduos orgânicos e a transformação em biogás inflamável, que poderia anular a necessidade do gás liquefeito de petróleo (GLP).
A concentração do trabalho está nas “cozinhas solidárias”, que são espaços gerenciados por movimentos sociais e regulamentados em lei de 2023 (nº 14.628). O números de atendidos em cada “cozinha” variam e a estimativa é 4 mil instalações espalhadas pelo País.
Desse total, 700 foram consideradas habilitadas para o projeto com biodigestores e, pela previsão, 100 devem receber os equipamentos até o fim de 2025. Esses sistemas são vistos como mais fáceis de serem implementados nessas localidades e atender a lógica de “autossuficiência” no combustível que é utilizado para a preparação dos alimentos.
O principal insumo nesse processo é a matéria orgânica, principalmente restos de alimentos e fezes de animais. O biogás é gerado no processo de decomposição e, na ponta, utilizado para alimentar as chamas dos fogões. Na coordenação do projeto estão o Ministério de Minas e Energia (MME) e o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).
Há, contudo, alguns empecilhos. Na função para cozimento, os modelos mais consolidados no mercado são importados de Israel, por exemplo. Mas, ainda não há uma personalização desses equipamentos. As opções são um biodigestor grande de R$ 20 mil ou um pequeno na faixa de R$ 13 mil. Não há variações de modelos.
Esse sistema, na prática, é uma espécie de câmara fechada, com uma tubulação especial e com um fogão também específico. O preço elevado para a aquisição do equipamento é compensado porque seria uma compra única. Não há estimativa feita sobre a vida útil.
Pelos estudos preliminares dos técnicos do MME, 60 quilos de esterco de animal e adicionalmente 13 quilos de restos de alimentos, nessa câmara, seriam suficientes para produção de biogás por uma semana em comunidades pequenas.
Financiamento
A ideia é que cada uma das 100 “cozinhas solidárias” no projeto piloto possam receber um biodigestor. O modelo de financiamento do programa está sendo estudado. Os responsáveis falam em buscar parcerias com o setor privado e citam como referência a instalação de biodigestores em 20 escolas de nove municípios de Minas Gerais, feita pelo consórcio Codanorte.
Não há definição, ainda, sobre eventual aporte de recursos do governo federal ou a concessão de estímulos para que as distribuidoras de energia, por exemplo, possam atuar nessa área.
O programa “cozinha solidária”, que fornece alimentação gratuita às pessoas em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar, tem registro no banco de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e vários desses locais são mantidos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST).
A expectativa do MME é que o mercado brasileiro tenha avanços nos próximos anos na comercialização de novos modelos biodigestores, incluindo de utilização de outros tipos de materiais orgânicos como insumo e a possibilidade de personalização dos equipamentos, de acordo com a necessidade de determinada residência ou centro comunitário.
Produção circular
Há vários tipos de biodigestores, com diferentes funções. Um projeto da Universidade de São Paulo (USP) está sendo desenvolvido com o uso de resíduos descartados pelas pessoas que circulam no campus. A coordenação é do professor Ildo Luís Sauer, do Instituto de Energia e Ambiente da USP.
Por meio de “reatores de agitação contínua”, que trituram os resíduos, uma tonelada de material orgânico produz cerca de 120 metros cúbicos de biogás e gera 800 litros de um líquido escuro que, após tratamento, é utilizado como fertilizante para hortas. A lógica é de economia circular.
“Tipicamente, uma família consome hoje, para a cocção, o equivalente a meio botijão de gás por mês. Isso dá cerca de 15 metros cúbicos de GLP. Poderíamos substituir e precisaríamos gerar em torno de 25 metros cúbicos de biogás por mês”, detalhou Sauer.
O biogás pode ser transmitido em longa distância por tubulação, mas não há infraestrutura suficiente para que isso ganhe escala no curto prazo. A produção local se destaca em termos de viabilidade econômica e logística.
“Há projetos começando no Brasil, no modelo de gasodutos que levam biometano, o equivalente a gás natural, às residências para cocção 100% limpa”, completou a presidente executiva da Associação Brasileira de Biogás, Renata Isfer. Ela cita como exemplos projetos nos municípios de Presidente Prudente (SP) e Londrina (PR).
No projeto do governo federal, os técnicos estão na fase de pesquisas sobre a quantidade de material orgânico gerado nas áreas do projeto piloto, espalhadas pelo Brasil. A partir desse experimento, o projeto pode se tornar uma política pública regulamentada.