“Quando a gente ama, não pensa em dinheiro, só quer amar”, escreveu Tim Maia em uma canção lançada em 1971. Planejamento financeiro, de fato, não é o ponto mais divertido de um relacionamento, mas negligenciar esse cuidado pode ter um impacto inclusive na relação do casal.
A falta de organização financeira está entre as principais causas de discussões entre casais e 57% dos divórcios realizados no Brasil na última década foram motivados por problemas financeiros. O dado é de 2018 e foi levantado pelo IBGE, mas outros levantamentos mais recentes apontam para a mesma direção.
Um estudo realizado pelo Serviços de Proteção ao Crédito (SPC), em parceria com a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), mostrou que 46% dos casais brasileiros brigam por causa de dinheiro. Já a pesquisa Fidelidade Financeira 2022, realizada pela Onze, fintech de saúde financeira como benefício para colaboradores, identificou que 27% dos parceiros consideram o modelo de divisão de contas em casa apenas parcialmente justo, injusto ou completamente injusto. E revelou ainda que, como resultado disso, 23% das pessoas realizam gastos ou compras escondidos de seu parceiro.
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Neste cenário, qual seria o melhor modelo de divisão de contas? Segundo Kelli Nogueira, planejadora financeira certificada (CFP), quando os dois parceiros possuem renda, o primeiro passo para pensar em uma divisão justa seria descobrir a renda conjunta e o percentual que cada um gera. Um exemplo: uma das pessoas recebe R$ 3.000 por mês enquanto a outra recebe R$ 7.000. Neste caso, a renda conjunta do casal é de R$ 10.000 mensais.
Como as duas pessoas contribuem de formas diferentes, aquela com o salário maior é responsável por 70% da renda enquanto a outra é responsável por 30%. “Neste caso, a divisão de despesa mais justa, seria de forma proporcional à renda”, afirma Kelli Nogueira.
Ainda neste exemplo, ela sugere que se a despesa total mensal for de R$ 7.000, quem ganha R$ 3.000 deveria contribuir com R$ 2.100 (30%) e quem ganha R$ 7.000, contribuiria R$ 4.900 (70%).
Para os produtores Ana Petta, 46, e Paulo Celestino, 46, a divisão é mais simples. O casal é dono de uma produtora de cinema e vídeo juntos e estabeleceram o pagamento de um salário mensal – e igual – para os dois. “Na verdade, a divisão de contas é bem tranquila em casa, porque trabalhamos juntos e ganhamos a mesma coisa, então tudo é dividido em 50%”, diz Ana Petta.
Com um contrato de união estável, o casal divide as contas e cada um paga uma parte. “No fim do mês, pegamos os extratos e vemos se um está devendo para o outro”, afirma.
Para eles, falar sobre dinheiro nunca foi um tabu. “Nos encontramos mais tarde na vida, então já havia uma certa maturidade para lidar com isso”, afirma a produtora. Mas essa não é a realidade de boa parte dos casais.
Para Carlos Heitor Campani, professor de finanças do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppead-UFRJ), existem diferentes modelos de divisão de contas e cada casal precisa encontrar o seu. “Mas uma dica perpassa todos eles: o casal precisa conversar sobre dinheiro e organizar a vida financeira em conjunto”, afirma.
Segundo a Pesquisa Fidelidade Financeira 2022, da Onze, essa ainda não é a realidade para a maioria dos casais: apenas 38% dos entrevistados afirmaram que possui um controle financeiro conjunto e outros 8% afirmou que possuem tanto um planejamento de casal quanto um individual. Enquanto outros 24% afirmaram que não têm nenhum controle financeiro e 16% disseram que apenas um dos parceiros possuía uma organização.
Samuel Torres, consultor financeiro da Onze, faz coro. “Não existe um modelo ideal de divisão de contas. O mais importante é o casal alinhar como vai funcionar essa relação. Se houver uma diferença muito grande de renda, eles podem decidir fazer uma divisão proporcional à renda de cada um. Ou ainda juntar todo o rendimento e lidar como uma entidade única. Vai depender da conversa do casal e de que maneira os dois se sentem confortáveis”, diz Samuel Torres.
Modelos possíveis
O empreendedor Yves Pires e a gerente de dados Elisa de Castro Buonanni nunca tiveram problema em falar sobre dinheiro. “Quando éramos amigos, já falávamos sobre investimentos e continuamos explorando esse mundo juntos”, afirma. O problema que eles enfrentavam era outro: a variação de renda. “Em alguns meses eu não ganhava nada, em outros, ganhava bem mais. Nos organizamos para que, nos momentos mais complicados, um emprestasse dinheiro para o outro”, diz.
Para organizar as finanças, eles desenvolveram um método próprio de controle dos gastos que envolvia o registro das contas na conversa de Whatsapp e o uso de um código para indicar que o arquivo se tratava de um comprovante de pagamento.
O sistema era tão confuso que nem os amigos mais próximos do casal entendiam muito bem como funcionava. “Não era o ideal fazer dessa forma, mas a gente queria poupar o tempo de abastecer uma planilha e ficar controlando por ela tudo. No Whatsapp parecia ser mais simples, mas ainda assim não era uma solução completa”, explica Pires.
O aplicativo de mensagens tem sido utilizado para controle financeiro por alguns casais e grupos de pessoas, mas ainda há quem prefira usar uma planilha, um caderninho ou até aplicativos específicos para isso, como o Splitwise, app gratuito de registro de gastos e divisão em grupos, e a Noh, um serviço que funciona como uma carteira digital compartilhada para automatizar a divisão de contas e despesas de um casal.
Lançada no começo do ano, a Noh identificou três tipos principais de organização financeira de casais: 1) cada um paga um tipo de conta e no fim do mês, é realizado um acerto; 2) um dos parceiros é o “CFO” do casal, cuida de todas as contas e informa sobre o valor que precisa ser acertado; e 3) uma conta conjunta ou um cartão conjunto é usado para as despesas realizadas pelo casal e a fatura é dividida depois. “Todos estes formatos têm algum problema”, afirma Ana Zucato, CEO e fundadora da Noh.
Segundo Zucato, o primeiro, por exemplo, pode levar ao atraso no pagamento de algumas contas e até, eventualmente, ao nome do parceiro ir parar nos serviços de proteção ao crédito. “Só funciona se os dois forem igualmente responsáveis, organizados, tiverem uma renda semelhante e um pagamento com a mesma periodicidade”, diz Zucato. São casos raros como o de Ana Petta e Paulo Celestino.
O segundo modelo, em que um dos parceiros é o responsável pelas finanças, acaba gerando uma sobrecarga mental e financeira. O terceiro modelo não oferece a mesma visibilidade da conta e dos gastos para os dois. “A conta do cartão precisa ser aberta no nome de uma pessoa e a outra não terá acesso integral aos gastos e ao extrato. Ela precisaria pedir acesso, usar o aplicativo do outro e sempre terá alguma barreira”, afirma a empreendedora.
Foram esses problemas que Zucato buscou resolver com a Noh. “Com o aplicativo, o casal tem acesso a todas as informações de gastos realizados em conjunto, sem precisar pedir a senha do outro ou esperar um comprovante ser enviado por mensagem”, diz. Como em um modelo de cartão pré-pago, cada parceiro realiza uma transferência via Pix para a conta do casal dentro do app e gera seu cartão virtual. A partir disso, cada compra realizada pode ser dividida e ajustada dentro da plataforma.
Segundo o levantamento da Noh, os casais de grandes cidades no Brasil gastam, juntos, uma média de R$ 4.500 por mês, com alimentação, moradia, saúde e lazer. “Muitas vezes, esse gasto acaba ficando em cima de apenas um parceiro que precisa assumir ainda o papel de cobrar o outro. Por outro lado, a segunda pessoa da relação, muitas vezes, não tem visibilidade ou noção de quais são os gastos reais do casal”, afirma Zucato.
O aplicativo permite que cada conta tenha um ajuste nos percentuais do que deve ser pago por cada parceiro e a funcionalidade é utilizada em 81% dos gastos. “Essa é uma das principais diferenças para uma conta conjunta tradicional. Além de não ter custo e os dois terem visibilidade de todos os gastos”, complementa Zucato. Pires e Buonanni, inclusive, migraram para a Noh depois de serem convidados para testar a plataforma. “A maior vantagem é não precisar cobrar o outro”, afirma.
O fundamental, segundo especialistas, é que o casal se organize. “Ferramenta é o que menos importa. O essencial é saber quanto está entrando e para onde o dinheiro está indo”, afirma Carlos Heitor. Um sintoma simples de perceber que há um desarranjo financeiro acontece quando a fatura de um cartão de crédito assusta. “A fatura não é uma surpresa. Se você já gastou deveria se lembrar disso”.
Discutindo a relação com o dinheiro
Quem está começando um relacionamento pode achar complicado abordar o assunto logo de cara. Para essas pessoas, os especialistas consultados sugerem que se observe, na medida do possível, os hábitos financeiros do parceiro: se busca economizar ou não, se tem responsabilidades financeiras. “Até para saber se é compatível com a forma como você lida com dinheiro”, afirma Campani, do Coppead-UFRJ. Ele completa. “Os dois têm que estar com a energia voltada para a mesma direção: se eu quero curtir a vida adoidado hoje enquanto você quer guardar dinheiro para estudar fora, a relação pode não ir para a frente”, afirma.
Quando o relacionamento evolui e o casal passa a planejar um futuro juntos, a conversa passa a ser necessária. “Mesmo que o casal more separadamente, eles passarão a ter gastos em conjunto. Se vão a uma festa, por exemplo, compram o presente juntos? Pagam pelo transporte juntos? Podem começar a conversa por aí”, sugere Campani.
Para Samuel Torres, consultor financeiro da Onze, quando os dois estão fazendo planos que exigem gastos altos, a conversa passa a ser imprescindível. “Comprar um imóvel, fazer uma viagem ou até se aposentar, tudo precisa de um planejamento”, afirma.
Kelli Nogueira sugere abordar o assunto de forma leve, sem cobranças – e sem trocadilhos. “Fale como você lida com o seu dinheiro, investimentos, quais são seus planos e metas para o futuro e pergunte a opinião do seu parceiro. Aos poucos vocês vão combinado a regra do jogo”, sugere.
Se a relação já existe há bastante tempo e o assunto ainda não virou pauta, a planejadora financeira aconselha marcar um horário para falar sobre o tema e recomenda: “estejam sozinhos para que este momento não seja interrompido ou desviado. Divida a conversa em tópicos e fale sobre objetivos conjuntos e metas individuais”, diz.
Nogueira também sugere “quebrar” a conversa em vários dias, para que os dois possam assimilar tudo que foi conversado, e inclua o assunto nas conversas cotidianas. “Planejar a vida financeira a dois é fundamental para manter um relacionamento de confiança e harmonioso entre o casal”, resume.
Para Campani, a dificuldade em dividir as finanças com os companheiros pode ser uma questão geracional. “Pessoas mais velhas podem ter mais dificuldades de começar essa conversa, ainda mais se a situação financeira estiver difícil. Ninguém se endivida da noite para o dia e não conseguir falar sobre é um sintoma de que algo não está bem na relação. No fim das contas, uma conversa aberta e franca é o melhor para o casal e o bem-estar da família”, afirma.
“A gente vem vencendo muitos tabus como sociedade, mas ainda não conseguimos conversar sobre dinheiro com mais tranquilidade. As pessoas ainda têm vergonha de falar que não querem sair para almoçar porque precisam economizar, por exemplo. Ou têm vergonha de perguntar o salário do parceiro para não parecer que está interessado no dinheiro”, diz.
Cada um na sua
Ainda de acordo com o levantamento da Onze, 80% dos entrevistados acreditam que seus parceiros mantêm os seus ganhos e controles financeiros abertos, de forma totalmente transparente. Mas 23% afirmaram que realiza gastos ou compras escondidos de seu parceiro ao menos uma vez por ano. Para Torres, isso não é, necessariamente, um problema. “Exceto em casos que esses gastos escondidos comprometam a saúde financeira do casal, não há problema em não abrir 100% dos seus gastos pessoais para o parceiro”, afirma Torres.
Depois de pagar as despesas e investir nos objetivos comuns, é preciso lembrar da independência de cada um. “É importante que o dinheiro seja separado, para que a individualidade seja preservada e fique livre de qualquer julgamento. Por isso, uma parcela do dinheiro, deveria ser utilizada como cada um bem entender, como lazer, compras, estudos”, afirma Nogueira. Desde que, claro, esses gastos não comprometam o futuro financeiro do casal.
Campani concorda: “Tem o seu, o meu e o nosso dinheiro. As afinidades e individualidades precisam ser respeitadas. Uma parte do orçamento precisa ser individualizada, mas sempre dentro de um limite pra não deixar nenhuma das pessoas se sentindo presa ou injustiçada”, afirma.
“Chamamos de organização financeira, mas o que está por trás disso é a felicidade do casal e como esse planejamento pode ajudar o casal a ter uma vida mais feliz e mais leve”, resume Campani.