BRUXELAS — Margrethe Vestager, a comissária antitruste da União Europeia e uma das mais destacadas críticas globais da indústria de tecnologia, recentemente percorreu seu escritório em Bruxelas refletindo sobre o destino dos itens acumulados ao longo da década em que exerceu o cargo, que deixou no final de novembro. Em determinado momento, ela fez uma pausa para erguer uma escultura de uma mão exibindo o dedo médio.
“O que devo fazer com isso?” questionou Vestager, de 56 anos. O dedo médio, explicou, era um lembrete para não se deixar abalar pelos críticos.
Vestager, política dinamarquesa que foi uma das poucas autoridades da UE a alcançar reconhecimento global, enfrentou inúmeros detratores ao longo dos anos. Quando assumiu o cargo de responsável por fiscalizar a lei antitruste em 2014, Vestager foi uma das primeiras autoridades governamentais no mundo a processar e impor multas severas ao Google (GOOGL34), à Apple (AAPL34) e à Amazon (AMZO34) por práticas comerciais ilegais e tentativas de barrar a concorrência.
Na época, os titãs digitais dos EUA estavam crescendo rapidamente e eram muito populares por suas inovações. Vestager enfrentou críticas por suas ações, com líderes do setor de tecnologia argumentando que ela estava prejudicando a economia europeia ao desestimular startups de se estabelecerem na região. Em 2018, o presidente Donald Trump disse que ela “realmente odeia” os Estados Unidos.
No entanto, no momento em que Vestager se prepara para encerrar sua trajetória em Bruxelas, a regulamentação da indústria de tecnologia tornou-se uma prática cada vez mais comum em escala global. Graças a trabalho dela, a Europa é amplamente reconhecida como pioneira na implementação de legislações mais rigorosas voltadas ao setor.
Nos últimos anos, os reguladores dos EUA seguiram o exemplo da Europa e moveram ações antitruste contra o Google, a Apple, a Meta (M1TA34) e a Amazon. Reguladores na Coreia do Sul, Austrália, Brasil, Canadá e em diversas outras regiões também estão enfrentando os gigantes da tecnologia.
“É extremamente gratificante”, disse Vestager ao The New York Times, adicionando que chorou ao obter uma vitória inesperada do mais alto tribunal da União Europeia em agosto, em um longo caso de evasão fiscal movido contra a Apple. “As pessoas achavam que éramos loucos, porque, há dez anos, as Big Tech pareciam intocáveis. Eram as empresas mais admiradas, inovadoras e promissoras que se podia imaginar.”
Até mesmo em Washington, Vestager deixou de ser vista como pária para se tornar uma desbravadora. Em setembro, durante sua última visita aos colegas do Departamento de Justiça dos EUA, os funcionários lotaram uma sala para ouvi-la discursar e a aplaudiram de pé no final.
“Ela é uma figura transformadora”, afirmou Jonathan Kanter, chefe da divisão antitruste do Departamento de Justiça, que mantém em seu escritório uma foto emoldurada de um rato de desenho animado mostrando o dedo médio em homenagem a Vestager. “Ela assumiu o cargo em uma época em que poucas pessoas discutiam a importância de uma supervisão rigorosa sobre guardiões digitais. Graças a ela, esse se transformou em um tema de discussão importante e altamente relevante.”
Vestager agora se prepara para assumir um cargo acadêmico em uma universidade na Dinamarca. Teresa Ribera Rodríguez, uma autoridade espanhola, está prestes a assumir o cargo de principal reguladora antitruste da União Europeia.
Vestager recentemente abordou a vitória de Trump e suas implicações, expressou confiança de que a Europa continuará na vanguarda do controle sobre o setor de tecnologia e defendeu por que limitar determinadas formas de expressão online é perfeitamente aceitável, ainda que isso provoque a ira de Elon Musk.
Vestager afirmou estar orgulhosa de sua trajetória, embora reconheça os desafios.
Muitos especialistas em tecnologia criticaram a postura rígida de Vestager, argumentando que ela enfraqueceu o setor tecnológico da Europa e reforçou sua imagem como uma criadora de regras excessivamente burocráticas.
Mas alguns ex-colegas disseram que os regulamentos da região não foram longe o suficiente. O Google, a Apple, a Amazon e outras empresas se tornaram ainda mais poderosas na última década.
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“Conseguimos ajustar o rumo e transformar o sistema? Apenas nas margens”, disse Tommaso Valletti, que foi um dos principais economistas de Vestager e elogiou seu comprometimento com a questão diante da adversidade. “Nós mudamos as Big Tech? Minha resposta é não.”
Vestager afirmou estar orgulhosa de seu mandato, embora reconheça que ele foi apenas “parcialmente bem-sucedido”. Ela mencionou que gostaria que seu escritório tivesse agido com mais rapidez e que havia pressionado as empresas a implementarem mudanças estruturais mais rigorosas, indo além da simples aplicação de multas. Ela apelou para que reguladores de todo o mundo fossem “mais ousados”.
Vestager comentou que a colaboração com os reguladores dos EUA era muito sólida, mas reconheceu que isso poderia mudar com Trump.
Até recentemente, os Estados Unidos eram conhecidos por adotar uma abordagem pouco intervencionista na supervisão da indústria de tecnologia. Vestager elogiou a postura mais firme do governo Biden, que incluiu a supervisão de julgamentos antitruste contra o Google. Em um caso, o Departamento de Justiça está pressionando pela dissolução da gigante da Internet.
Vestager afirmou que a adoção de uma medida tão significativa por parte de um regulador dos EUA teria repercussões globais e poderia alterar o comportamento da indústria.
“Estamos no negócio da dissuasão”, disse ela. “E se ocasionalmente não utilizarmos nossas ferramentas mais poderosas, não haverá dissuasão.”
Vestager afirmou ser “muito difícil prever” como as coisas podem mudar com Trump, mas destacou a rapidez com que os líderes do setor de tecnologia o parabenizaram por sua eleição.
“Ver o quão rapidamente os líderes da tecnologia parabenizaram o presidente eleito Trump deixou claro que havia uma grande esperança de que tudo isso mudaria”, analisou.
Vestager abordou o tema dos abusos on-line que ela e outras mulheres têm enfrentado.
Ela disse que evitava ler comentários tóxicos na Internet, destacando que isso tem um impacto perigoso na democracia, pois muitas pessoas, em especial mulheres, estão sendo desestimuladas de participar na política.
“Há um objetivo por trás disso: ‘Você, mulher, cale-se. Vá para casa. Fique quieta. Não queremos saber de você”, disse. “Ouvi inúmeras mulheres jovens, talentosas, apaixonadas e ambiciosas dizerem: ‘Não quero que isso faça parte da minha vida.’”
Vestager disse que a supervisão das plataformas de mídia social é mais importante do que nunca.
De acordo com ela, uma nova lei europeia, a Lei de Serviços Digitais, deu às autoridades da União Europeia novos poderes essenciais para regulamentar plataformas de mídia social. Ela explicou que as empresas de Internet nem sempre compreendem que as leis europeias diferem das dos Estados Unidos no que diz respeito ao que é considerado discurso ilegal, incluindo racismo, antissemitismo e conteúdo relacionado ao terrorismo.
“Se uma plataforma é usada para minar a democracia, bem, então claramente ela não está em conformidade com a Lei de Serviços Digitais”, analisou.
Ela afirmou que a nova lei era essencial para lidar com empresas como o X e o Telegram, que não tomaram medidas suficientes para monitorar e remover conteúdo prejudicial e ilícito de suas plataformas.
“Considero completamente legítimo que, por exemplo, meu país natal, a Dinamarca, aprove uma lei que torne o discurso de ódio ilegal”, declarou. “O que considero ilegítimo é não querer respeitar essas leis.” Vestager disse que a proximidade de Musk com Trump não deve influenciar a regulamentação de suas empresas, incluindo o X, que está sob investigação pela Comissão Europeia.
“Um dos fundamentos do modelo europeu é o Estado de direito e a igualdade de tratamento, e isso deve se aplicar a todos”, comentou.